Rodrigo de Lima Casaes
Publicado no site Migalhas em 5 de junho de 2020
1. Indrodução
Este singelo estudo visa analisar como podem ser aplicados os princípios do projeto de negociação de Harvard aos contratos de locação nos tempos atuais, em especial aos chamados contratos não residenciais (ou comerciais, no jargão popular).
O intento é realizar uma breve explicação dos conceitos propostos por Harvard e examinar casos práticos, onde foi possível aplicá-los, à luz do ineditismo dos tempos atuais de pandemia, algo nunca visto antes no mundo moderno.
Utilizando o método foi possível negociar acordos bons e justos para locadores e locatários, sempre considerando as particularidades de cada caso e os impactos da Covid-19.
Antes de adentrar no tema, falemos um pouco da base jurídica que subsidiará tais negociações.
2. Embasamento jurídico para negociações durante a pandemia
Pois bem, o nosso Código Civil, legislação moderna¹ , elaborada por notáveis, entre os quais o Eminente Ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, prevê, entre seus dispositivos, mais especificamente em seus artigos 317 e 478 a 480, a hipótese de reequilíbrio do contrato quando acontecimentos imprevisíveis e extraordinários tornam desproporcionais as prestações contratuais.
No artigo 317 do Código Civil encontramos os fundamentos para a aplicação da teoria da imprevisão, ao passo que os artigos 478 a 480 regulam a onerosidade excessiva.
Não é o objeto deste estudo aprofundar tais fenômenos jurídicos, mas basta dizer que é dever dos contratantes manterem as prestações do contrato equivalentes (quando essa equivalência decorrer do modelo de contrato), fundado tal proceder em outro princípio jurídico, a boa-fé objetiva, insculpido por sua vez no artigo 422 do Código Civil.
Naturalmente que esses princípios se aplicam a todo e qualquer contrato comutativo (aquele com prestações equivalentes), contudo, aqui analisaremos sua aplicação específica aos contratos de locação, notadamente as locações não residenciais.
3. O projeto de negociação Harvard
Há quase 40 (quarenta) anos, após muito estudo e extensa pesquisa, a Escola de Negócios de Harvard desenvolveu um espetacular método negocial, por intermédio do qual os Professores Roger Fisher e Willian Ury, posteriormente acompanhados por Bruce Patton (a quem tive o privilégio e a honra de assistir em Harvard), sistematizaram experiências negociais passadas de sucesso, identificando quais elementos auxiliavam na realização de uma composição justa e satisfatória para todas as partes envolvidas².
Utilizando os 7 (sete) elementos que compõem o método, valorizados e aplicados ao longo da negociação, se busca identificar os interesses das partes envolvidas, por meio de uma comunicação eficaz, valorizando a manutenção de uma boa relação, buscando opções que satisfaçam os interesses mútuos, através de critérios de legitimidade válidos e aceitos por todos, gerando reciprocidade para as partes e firmando um compromisso viável e possível.
A alternativa mais comum, nas hipóteses aqui discutidas, usualmente será a busca do Poder Judiciário, mas isso não só foge ao domínio das partes, como também prejudicará a relação e postergará a solução do problema.
Naturalmente seria impossível, até mesmo ao Professor Roger Fisher, que já nos deixou, explicar em poucas linhas o que é o método Harvard de negociação.
No entanto, pode-se dizer que é uma de inúmeras técnicas negociais existentes, já tendo sido utilizada e testada com significativo êxito em negociações das mais diversas, desde aquelas envolvendo múltiplas partes, países e grandes empresas multinacionais, até outras em nível doméstico, como por exemplo as negociações sobre o preço das locações durante a pandemia.
Ainda, deve ser destacado que o objetivo será sempre uma negociação justa e honesta, sem vencedores, mas com partes satisfeitas, pelo sentimento de justiça decorrente da solução alcançada, que satisfará os interesses envolvidos.
4. As locações não residenciais (ou comerciais)
No ano de 1991 entrou em vigor a Lei 8245/91, legislação muito importante, que atualizou a regência sobre as locações, com ditames legais modernos e, até hoje, atuais.
As locações não residenciais são aquelas nas quais o locatário tem por objetivo a exploração do espaço locado com intuito comercial, visando fundamentalmente o lucro.
Por suas características, destacando que a livre iniciativa é um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil³ , tal modalidade locativa mereceu tratamento destacado e diferenciado pelo legislador, com algumas garantias e proteções adicionais, tais como o direito à renovação compulsória do contrato, a dificuldade (ou vedação) da retomada do imóvel pelo locador, entre outras.
As locações não residenciais aqui abordadas serão aquelas desenvolvidas pelos lojistas, exploradores de atividades comerciais destinadas ao público consumidor final, tanto em produtos, quanto em serviços.
4.1 Imprevisibilidades e onerosidades para os lojistas decorrentes da pandemia de COVID19
A pandemia iniciada em Wuhan, na China, trouxe para as atuais gerações uma sensação inédita, vivenciada pelas gerações do século passado durante a gripe espanhola, a grande depressão de 1929 e as duas guerras mundiais.
O coronavírus paralisou o mundo inteiro e, naturalmente, a maioria das atividades econômicas, inter-relacionadas em virtude da globalização, o mundo hoje ficou menor que no século passado. É bem provável que o impacto econômico, ainda sendo vivenciado, proporcionalmente, seja maior do que em qualquer dos eventos acima mencionados.
Em relação às atividades econômicas, levando em conta as notórias determinações dos entes estatais que paralisaram, proibiram ou limitaram a exploração da maioria das atividades comerciais, houve severo impacto ao faturamento e fluxo de caixa das empresas, com real risco de quebra dessas empresas.
Em algumas situações o faturamento passou a ser zero, embora mantidas inúmeras obrigações, tais como salários, impostos, concessionárias de serviços públicos, aluguéis, entre outros. Pouca ou nenhuma receita para enfrentar as despesas de sempre.
A despeito de algumas elogiáveis ações do Governo Federal, como postergação e parcelamento de impostos, financiamento da folha salarial, possibilidade de suspensão e redução de jornada dos contratos de trabalho, a manutenção do caixa se tornou crucial para a sobrevivência durante e após a pandemia, até mesmo em razão do provável retorno lento e gradual, para aquelas empresas que suportarem, com provável necessidade de longo lapso temporal até efetiva retomada das condições tidas como “normais”.
De toda sorte, a nova “realidade” trouxe consigo necessidade de ajustes, com a inafastável necessidade de renegociação de todo e qualquer contrato, mais ainda aqueles de natureza continuada, de modo a reequilibrá-los e manter justa a relação jurídica antes equivalente.
Justamente nesse ponto, torna-se útil o conhecimento do método negocial proposto por Harvard, auxiliando as negociações e afastando a necessidade de ingresso com ações judiciais, que retira da parte a solução da questão e prejudica a relação dos contratantes.
4.1.1 Particularidades das locações de shoppings
Toda e qualquer relação locativa guarda mais de uma relação jurídica em seu bojo.
Com efeito, existe a relação entre o locador e o locatário e a relação entre o ocupante do imóvel e o administrador das despesas de manutenção do imóvel (condomínio). Muito embora o ocupante do imóvel também arque com alguns impostos (IPTU, taxa de incêndio), tecnicamente, essa obrigação decorre da primeira relação, uma vez que o devedor do tributo será sempre o proprietário, não se tratando, por conseguinte, de uma terceira relação jurídica, desta feita com o ente estatal.
No caso especifico dos shoppings, que, de per si, já são sociedades comerciais explorando uma atividade comercial, não raro há confusão nessas relações, sendo as duas havidas entre os mesmos exatos personagens.
Ou seja, o aluguel é pago diretamente ao shopping, assim como as taxas de manutenção do shopping (o famigerado condomínio) são a este pagas, que as administra como melhor lhe convém.
Salvo raras exceções, quase todos os shoppings do Brasil estão fechados por determinação estatal. Ora, se houve fechamento dos shoppings, não é possível ao locatário, sequer, acessar o local de exploração de seu negócio.
Por conseguinte, as atividades econômicas não podem ser exploradas (excetuadas eventualmente alimentação e farmácia através de deliverys).
Como resolver nessa hipótese?
Utilizando-se de princípios jurídicos, portanto critérios de legitimidade, busca-se referências para as soluções na lei e na jurisprudência.
Considerando que o shopping é um explorador de atividade comercial e que, por tal, deve assumir os riscos do exercício de seu negócio (por entendimento jurídico consagrado), é justa uma solução onde sejam pagas as despesas sobre o imóvel (com as diminuições naturais decorrentes das paralisações), não sendo pago qualquer valor a título de aluguel (ou quase nenhum valor sob tal rubrica).
Inúmeros contratos de shopping possuem previsão de pagamento do aluguel percentual (sempre com um aluguel mínimo), poder-se-ia compor assim, como uma das opções, o pagamento do aluguel apenas percentual, para aquelas atividades com algum funcionamento.
Tal solução de justiça é tão evidente que muitos shoppings já se anteciparam às negociações, propondo desconto no condomínio e isenção total ou parcial nos alugueres, evitando assim inúmeras discussões judiciais e mantendo uma relação positiva por meio de uma comunicação clara e honesta com os lojistas.
4.1.2 Locadores nos shoppings que não se confundem com o administrador
Eventualmente, em especial quando se trata de shoppings muito antigos ou de pequeno porte, não é incomum que o proprietário da loja locada seja distinto do administrador do shopping.
Nesse cenário, será importante perquirir a condição do locador.
Imagine-se, como exemplo, uma empresa de capital aberto, listada na bolsa de valores, que exerça como negócio a aquisição de imóveis para investimento e aluguel. Ou então, em situação oposta, um locador idoso, que despendeu parte de suas economias da vida na aquisição de um imóvel, destinado a prover parte de sua aposentadoria.
Por óbvio, o tratamento de tais circunstâncias deve ser diferenciado. Na primeira hipótese, a exploração da locação como negócio deve suportar maior carga da pandemia, eis que tal decorre dos riscos do negócio assumidos pela empresa.
Por outro lado, o locador de menor porte, seja pessoa física, ou até mesmo uma pessoa jurídica familiar administradora de bens próprios, merecerá solução distinta da anterior.
Com efeito, nessas hipóteses, como dito acima, será comum encontrar como locadores personagens que utilizam tais imóveis como investimentos destinados a prover toda ou parte da própria subsistência.
Assim, levando em conta tais particularidades, uma solução intermediária se mostrará mais adequada, com a divisão do custo social entre locador e locatário, mantida sempre incólume a obrigação do locatário de pagamento das despesas do imóvel.
4.1.3 Locadores de lojas de rua e de salas comerciais
Hipótese, também recorrente, são os lojistas de rua (fora dos centros comerciais portanto) e igualmente os locatários de estabelecimentos comerciais com diminuição ou vedação de seu funcionamento e de seu faturamento.
Em tais casos, haverá similaridade com o descrito no tópico anterior. De um lado poderá se encontrar pessoa que explora a locação como negócio ou alguém que busca a subsistência com o fruto da locação e, de outro, como usual neste momento extraordinário, via de regra um locatário que busca explorar um negócio, afetado severamente em razão das atuais circunstâncias excepcionais.
Tal como esposado no item antecedente, cada contrato deverá ser analisado casuisticamente, equilibrando-se o grau de afetação do negócio e a posição do locador, a fim de se buscar uma solução de divisão dos custos sociais decorrentes da pandemia.
5. Acordos alcançados
Consoante mencionado no início deste texto, a partir dos panoramas antes mostrados, de notório conhecimento e de aceitação fácil por qualquer pessoa que atue com boa-fé, é possível se buscar acordos que viabilizem a continuidade da locação, com reequilíbrio temporário da prestação locatícia, condizente com o cenário atual.
Pessoalmente, sempre aplicando os princípios negociais de Harvard, este Autor se envolveu em inúmeras negociações nos tempos recentes, com concessões de descontos no aluguel de até 100%, ou de percentuais variados (30% a 60%) por alguns meses, alguns até o final deste ano, mas sempre mantida a boa relação entre as partes e a comunicação aberta e produtiva.
Lamentavelmente alguns (realmente poucos) acordos não foram possíveis, com a necessidade de recurso ao judiciário. Nessas hipóteses, em geral, houve deferimento de medidas liminares, concedendo algum abatimento no preço das locações, mas não sem os custos decorrentes dessa solução, tanto financeiros, quanto ao relacionamento, como também com a incerteza da distante decisão futura e definitiva dessa relação.
Possivelmente o novo “normal” implicará em um reaquecimento da economia lento e gradual, não só em virtude do receio inerente pós-pandemia, como também em razão de novos hábitos adquiridos durante a quarentena (as compras on-line, afetando o varejo, e o uso de aplicativos como ifood e similares, com impacto sobre restaurantes).
Tal cenário, muito provavelmente, trará a necessidade, recomendável, de novas negociações, onde as técnicas negociais de Harvard, por certo, serão muito úteis, assegurando a tomada de decisão conjunta entre os envolvidos, sem a necessidade da busca da solução por terceiros.
Notas
¹Lei 10.406, de 10-1-2002 – Código Civil
²Para saber mais, veja Getting to YES: Negotiating Agreement Without Giving In.1981., 1991, 2011. Em português, Como chegar ao Sim / Roger Fisher, Willian Ury, Bruce Patton, tradução 2018 e também, Supere o NÃO, Como negociar com pessoas difíceis / Willian Ury
³Constituição Federal, artigo 1º, inciso IV